sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

o violoncelo na esteira

a capa preta cobria o contorno do instrumento, enquanto o rapaz o arrastava, sem nenhuma dificuldade aparente. ninguém poderia afirmar se era mesmo um violoncelo que existia debaixo da cobertura (poderia ser, no chute, que uma montanha de ordens de despejo ou tortas confeitadas estivesse organizada justamente no formato de um cello. no meio do vaivém da estação, o que quer que permanecia acumulado ali, se tornava completamente invisível). esperei do lado do corrimão da escada normal a chegada de andrei (se é que ele realmente viria ao meu encontro), dando passos pouco espaçados em direção ao falso músico e seu instrumento. crianças o observavam atônitas, apontavam para o objeto preto em forma de violoncelo, e deliravam com a ideia de tocar naquilo, produzindo sons que eles provavelmente nunca haviam escutado antes. seu dono, porém, era tão passivo e indiferente quanto a esteira rolante que o transportava: seguia seu caminho sem notar os burburinhos de poucas cabeças pensantes e (nada) inocentes que o acompanhavam. o barulho de seus sapatos arrastando na esteira era inaudível, mas se por um acaso pudéssemos escutá-lo, apostei que fosse bem passível de se tornar parte de uma sinfonia delirante. de repente, comecei a ouvir clarinetas, harpas e cornetas: seus condutores tiravam os instrumentos das capas e começavam a tocá-los, entre os passantes da pequena multidão do metrô. eu ouvia a orquestra avançando, e seu ritmo pulsante me fazia estremecer, e movimentar as mãos como se eu fosse o maestro regente. um gesto brusco de uma nota mais grave, e tudo cessara: a esteira parara, os curiosos petrificaram-se em suas posições, os músicos olharam em volta e se deram conta de que não estavam em nenhum anfiteatro, pois não havia cadeiras, plateia sentada, aplausos ou vestidos de cetim brilhando com as luzes do palco. as notas musicais formavam correntes que atravessavam os corredores da estação com violência, parecendo vagalumes oscilantes buscando algo para iluminar: qualquer rosto que tivesse um pouco mais de vida, de verdade. mas nada era muito verossímil, nem as maletas de violinos, e muito menos aquele violoncelista específico que, por abdução extraterrestre ou simplesmente por estar muito atrasado, acabou desaparecendo de vista. neste momento, andrei se aproximava: ofegante, olhando para o chão, e iluminado pelo seu paletó branco de linho. nele, um bordado me chamou a atenção: uma clave de sol, que provavelmente havia escapado da sinfonia (ou do enxame de vagalumes) e conseguido se fixar, mesmo que sobre um bolsinho remendado e desbotado, do paletó do meu amigo.

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textos autorais de Felipe Fernandes. design: Diogo Machado.

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