terça-feira, 26 de agosto de 2014

a palidez, somente ela


"às vezes eu preferiria olhar pros meus bonecos na estante do que olhar pra sua cara". era o que deveria ter dito mas era forte demais, duro demais, triste demais. não havia mais telha, móvel, quadro na parede que se sustentasse diante da avalanche provocada por memórias enfadonhas, segredos indecifráveis, diálogos ridículos que ele poderia ter tido durante durante um jantar banal em um sábado banal dentro do restaurante mais banal do bairro. semana após semana seu estado se tornava ligeiramente mais invisível, e a destruição era sempre iminente, mas nunca palpável. a vida era como um aquário cheio de peixes mortos, com os vidros esverdeados e uma casca grossa de fungos e fitoplâncton nos vidros que nem uma lixa potente conseguiria remover. o passado era um refúgio seguro porém perigoso: teria sido "feliz" antes ou só agora é que se dava conta de que todas as situações que vivera até então tinham sido forjadas, muito bem ensaiadas para serem percebidas e depois reproduzidas anos mais tarde como "momentos felizes"? ele concordava com essa teoria, tudo não passava de um grande truque de mágica de um destino horrivelmente chato, piegas, mentiroso.
da cadeira do cinema, espiou bem por cima de seu ombro uma senhora bem vestida, tentando talvez achar seus óculos perdidos dentro de uma pequena bolsa de couro rachado. pensou reconhecê-la: era sim bem parecida com sua mãe, tinha envelhecido bastante ao longo dos últimos anos, conservava um sorriso estático, enegrecido pelo passar dos anos de viuvez, tédio profundo, cansaço mental e físico. após um instante observou outra situação envolvendo a mãe ou a senhora que procurava algo na bolsa: estava também curvada para a frente, em uma sala pálida e cinzenta, com as duas pernas sobre a cabeça e a respiração pausada, porém ofegante. uma bola de plástico prateado envolvia sua cabeça e tronco, e um sopro anestésico subia até o seu cérebro toda vez que seu corpo trabalhava para frente e para trás, em exercícios abdominais sucessivos e constantes, acalmando o seu cérebro já quase paralisado, inerte, uma massa cinzenta coberta de cimento fresco, como uma lápide de cemitério recém-fabricada.
nas fotografias de 1992 a 1996, no entanto, o colorido dessa mulher ainda não se apagara: ela ainda fitava com verdadeira alegria um jardim de begônias amarelas, ladeado por tijolinhos, que abrigava um banco de madeira verde. nele, seu filho, na época com cinco ou seis anos, fazia caretas divertidas enquanto o pai tentava arrumá-lo em uma pose perfeita para a foto. kodak 35 mm, a câmera era o instrumento clássico para tirar os retratos de domingos em família em parques, clubes, piscinas aquecidas. hoje, as fotos tiradas por essa câmera já estavam cheias de nervuras cor-de-rosa e pontinhos brancos minúsculos. o tempo não perdoara nem a careca do avô da família, o brilho característico da calvície havia sido substituído por um pó escuro que lembrava sardas e manchas provocadas pelo sol. o bolor não poupou tampouco um relógio de pulso que o avô sempre portava, cobrindo-o quase que completamente. naquela época nada havia ainda perdido o gosto de novidade, de movimento, de que algo realmente estava acontecendo e para acontecer. o futuro era lívido, 2004 seria o começo de uma nova era espacial, ziggy stardust e suas aranhas de marte renasceriam e brilhariam outra vez em palcos esmaltados, seria uma nova revolução cultural, política, social, comportamental. para ele, aquele filho, aquele neto solitário de 1995 tudo já estava previamente arranjado: trabalharia em uma sala cheia de vazios brancos e luzes fluorescentes baixas que davam dor de cabeça. ao longo dos anos casaria (em 2018, digamos?) e moraria no mesmo bairro de sempre, olharia a mesma calçada rachando, os sulcos se tornando cada vez mais grossos e fundos, como uma pele idosa que nunca sonhou com tratamentos estéticos, como as fotos da kodak, o rosto dos pais, dos avós, dos tios, dos primos. o ceu seria o último limite, as ruas não terminariam, a rotina pareceria engoli-lo e o digerir a seco, diluindo cada vértebra, órgão, fio de cabelo com ácidos estomacais de cores variadas que acabariam transformando-o em um ser incolor, afinal a mistura de todas as cores do espectro de luz acabava em branco, sempre. os bonecos também teriam dito adeus para as suas cores, e ele jamais teria encontrado ninguém, seria um cadáver albino se arrastando em direção a uma segunda morte, ainda mais dolorosa e patética do que a primeira. sua insignificância certamente seria a causa mortis, sendo contagiosa mesmo após o seu óbito definitivo, pois até as flores brancas se recusariam a enfeitar seu pequeno mausoleu.

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