sobre uma festa de ano novo falida
talvez logo eu ficasse com uma enorme dor de cabeça antes que a campainha tocasse de novo. com as luzes apagadas, ella e eu nos abraçávamos em um canto do sofá de três lugares. ella, portando um vestido marrom de tafetá, frente única, ainda não se livrara totalmente da maquiagem e dos sapatos com solas de vinil que arrastava conforme o ritmo da música. era uma festa às escuras. em pleno reveillon resolveram trocar todos os postes e fios daquela rua isolada (mais ou menos perto de manhattan, você diria), abandonada naqueles dias aos próprios cães vagabundos que latiam ferozmente de saudades das buzinas dos conversíveis que, àquela hora, deveriam estar se bronzeando em um sol colorido em frente a uma barraca de crepes chamuscados na chapa quente. os adesivos nos parachoques desses carros traduzem bem a paisagem que os circunda: coqueiros ao vento, dunas desertas, banhistas de biquíni cavado no colo de surfistas com dentes clareados à laser. aliás, era o laser de uma caneta a única fonte de luz de nossa deprimente despedida de ano. na casa de ella não havia lanternas, velas ou luzes de emergência portáteis. no começo, os celulares iluminavam tudo a um pequeno palmo de distância, mas depois de um tempo as baterias se esgotaram e os convidados começaram a partir. vários casais (e pseudo casais) fumavam na varanda à espera do primeiro sinal luminoso na casa: algum interruptor aceso por engano, o rádio-relógio que haviam esquecido de tirar da tomada ou mesmo os pisca-piscas que emolduravam a cortina da sala o ano todo, mesmo em épocas em que o natal não passava de uma caixa de enfeites desbotados trancada em um guarda-roupa caindo aos pedaços. a sala ainda concentrava o maior número de visitantes que resistiam ao apagão sinistro: emília e pablo, cochichando como agentes do serviço secreto, helena, que murmurava a um encosto de poltrona segurando um copo de plástico vazio manchado de vinho, e alceu, dominando boa parte do tapete com sua coleção de LPs do ronnie von e outras nostalgias que ele sempre carregava consigo nessas comemorações tristonhas. já eu e ella jazíamos no sofá, abraçados no breu. não ouvíamos mais a vitrola a pilhas que já não dava conta de se sobressair do burburinho melancólico daquela véspera de 2008 (ou seria 2018? se o fosse, o futuro seria tão cinza-escuro quanto presumíamos?) e acabamos adormecendo, um no colo do outro, durante boa parte dos acontecimentos seguintes. uma rolha de cortiça pipocou pelas paredes, champanhe barato foi derramado na manta de padrão geométrico do sofá (fazendo com que uma meia-lua se tornasse lua cheia), o gato saiu espantado com os fogos de artifício e estraçalhou uma porção de almofadas com as unhas, ronnie von recomeçou a cantar, e nem assim eu e ella acordamos daquela sesta perdida em uma sombra de noite que parecia mergulhada em éter, chá de camomila, uma cartela de dramin diluída em licor de pêssego. sabrina, a irmã, nos acordou com sacudidelas: “a festa acabou, todos foram embora”.
móveis revirados,
toalhas de mesa ensopadas de bebida, caroços de uva acumulados nos cantinhos
das poltronas. “o cenário pós-apocalíptico no fim das contas é bem menos
assustador do que falam”, concluiu ella. sua única preocupação eram os livros
na estante: algum teria caído? as capas estariam intactas, sem respingos de
bebida ou marcas de dedos engordurados? aparentemente não. ella, após verificar
volume por volume, decidiu ir à piscina, ainda com o rosto marcado pelos botões
da minha camisa. “e essa bagunça?” “arrumaremos mais tarde. o primeiro do ano,
afinal, é sagrado”.
pulamos na
piscina. na TV ligada, vi de relance imagens que mostravam exatamente a cena
que representávamos no momento: pulos com pequenas borrifadas de água, verão no
ápice, o letreiro da cidade de hollywood ao fundo. tanto que me virei para ver
se não avistava as letras brancas, bem longe atrás dos morros cobertos de casas
de veraneio. a letra que eu escutava também vinha da TV e dizia algo sobre
jogar vídeo games. ella disse que adorava a tal música e ficou fazendo piruetas
na água, enquanto declarava “it’s you it’s
you, it’s all for you”, seguindo a valsa hipnótica da melodia. fui à cozinha e
preparei uma limonada sem açúcar. engoli-a de uma só vez. a acidez brutal do
limão fez com que minha garganta formigasse até adormecer, de forma que passei
o resto da tarde calado. tomamos ducha gelada e recolhemos cacos e restos de
comida do chão e do tapete. a cozinha, no entanto, ficou intacta: não havia
coragem suficiente de nenhuma das partes para enfrentar os copos e pratos
descartáveis que cobriam o fogão e a pia de granito. sentamos no sofá, mais uma
vez, e lá ficamos como na noite anterior, só que afastados, com ella queixando-se
de queimaduras de sol. mexi nos botões do rádio e descobri que o apagão tinha
feito mesmo muitos estragos. passei então a enxergar melhor o panorama da
bagunça: não havia nada que não estivesse dependurado, partido, terminando de
rolar pelo assoalho ou simplesmente ausente. ella dormia mais uma vez enquanto
eu constatava que o único objeto, além dos livros na estante, ainda em seu
respectivo lugar era a fileirinha de luzes, apagadas, que compunha o
pisca-pisca decorativo sobre a cortina.
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