sexta-feira, 24 de abril de 2015

turning pages of a book cause I can't even look...


ela não lia as palavras, às vezes. virava as páginas como se resolvesse palavras-cruzadas, olhando o resultado de antemão muitas folhas à frente. não piscava ou pestanejava, corria os dedos pelas letras como se estivessem escritas em braile ou digitadas em alto-relevo. comia pedaços de maçã verde com a ponta dos dedos cantando baixinho: lalalala love you baby em uma voz quase infantil, imitando a da intérprete do disco que ouvia girando na vitrola (ou sendo executada em uma playlist de uma versão desatualizada do itunes). geralmente não via o gato entre o beiral da sua janela e o começo da janela da vizinha de frente, mas naquele dia podia enxergar metade do animal, lambendo as próprias costas e pulsando as orelhas como antenas de rádio de desenho animado. virou o rosto para dentro do travesseiro. não conseguia mesmo ler as palavras, o livro era em francês. perseguiu um inseto com a ponta do nariz que foi se instalar perto dos seus sapatos de solado quase solto. soltou um assobio: acompanhava a melodia, mas não tinha certeza se era daquele jeito mesmo que deveria assobiar, sua percepeção estava alterada pelo crescente barulho de uma motosserra. de repente, adormeceu de novo e sonhou com uma casa de parede de tijolos e porta de ferro com vidro. assobiou no sonho, e alguém veio atender a porta: era uma senhora baixinha e cansada, vestindo um avental cinza e calçando chinelos de pano coberto de poás. estava servindo café e chá um instante antes de abrir a porta, portanto segurava uma chaleira fumegante em uma das mãos. pouco solícita, resmungou algo para dentro e nem viu a presença dela ali, na soleira da sua porta. pois era mesmo sua neta, certamente, que sempre a visitava e dividia com a vó os últimos nacos de seus bolinhos de chuva demasiadamente queimados (e molhados). vestiu um casaco (no sonho) e se cobriu com o cobertor (na realidade). não parava de acordar de sonhar de assobiar de tocar a campainha e de cantarolar em voz infantiloide a mesma música, virando a página do livro, sem entender nada e percorrendo o estranho inseto com a ponta do nariz. era tarde no planeta, e não valia mesmo a pena acordar.

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