quinta-feira, 5 de março de 2015

antes da epopeia

   eu só precisava de um guarda-chuva novo. e ela ali, esperando o ônibus das 6:42 sem pensar em outra coisa que não fosse o quadro que eu havia colocado em cima da cabeceira da nossa cama.
   - aquela foto é terrível. a crueldade com que eles tratavam os elefantes no circo antigamente...
  suspendi a palma da mão no ar novamente para verificar se chovia. ainda não.
   - não só antigamente, hoje em dia não deve ser melhor ou pior.
  - as associações de proteção aos animais não devem deixar! devemos procurar casos de abusos e denunciar!
   apenas franzi a testa, fingindo preocupação. decerto choveria, a umidade era insuportável e o cheiro de terra molhada se sobressaía ao das frituras em óleo vencido que vinham dos restaurantes ao redor.
   - não entendo o porquê desse descaso das pessoas com os animais. ninguém quer saber se o xampú que usa todos os dias no cabelo matou uma família inteira de coelhos para poder ser fabricado. 
    - por isso que eu não piso mais em salões de cabeleireiro - retruquei, querendo diminuir o peso da conversa. em vão.
   - você está muito azedo hoje. acho que foi aquele iogurte velho que você tomou. eu avisei que estava fora da validade.
    a tempestade finalmente começava a esboçar sua chegada. gotas finas e espaçadas, como as de uma goteira no teto, começaram a pipocar aqui e ali no asfalto, deixando marcas arredondadas e escuras.
  nina estava vestindo uma parca amarela. não sabia onde havia comprado (ou de quem havia ganhado) aquela peça de vestuário que a deixava parecendo um cogumelo invertido: a haste em cima, e a parte que se assemelhava a uma cúpula de abajur ou um guarda-chuva, para baixo. não chegava a engordá-la, mas como ela portava uma saia rodada embaixo de tudo, acabava parecendo um bolo de casamento prestes a explodir.
   - estou sem guarda-chuva. e você?
   esvaziei os bolsos e respondi: 
   - também.
  as gotas aumentaram enquanto o ônibus estacionava. o grande cogumelo amarelo subiu, sem se despedir. eu fiquei ali esperando ele entrar e observando com dificuldade, pois a enorme enxurrada que vinha ensopou as lentes dos meus óculos e eu enxergava o interior do ônibus como se estivesse olhando-o através de um caleidoscópio. nina se transformou em 5, 12, 23: sua figura não era mais distinguida, um quadro impressionista com tons de amarelo berrantes e disformes se configurou no meu campo visual: cogumelos, girassois, abajures, vagalumes. um borrão de tinta percorreu o ambiente inteiro e eu não enxerguei mais nada em seguida, tive que tirar os óculos e observei, míope, ela colocar a bolsa no colo e os fones de ouvido, um em cada orelha. estava trânsito: o ônibus não conseguia sair, nina chegaria atrasada (mais uma vez). "os gafanhotos podem esperar", pensei. "mas eu não", completei, e andei para atravessar a rua, na frente do ônibus parado.
   

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]






um zero e dois pensamentos © 2013.
textos autorais de Felipe Fernandes. design: Diogo Machado.

um zero e dois pensamentos

TRANSLATE: