terça-feira, 16 de setembro de 2014

era uma (ou duas ou três) vez (es)

rebeca era mulher. tinha 36 anos e alguns meses, olhos castanho-claros, pele escura, sardenta, cheia de pequenos poros abertos e algumas linhas de expressão já salientes apesar da relativa jovialidade. media um metro e sessenta e dois, portanto nunca ganhara nenhuma competição de altura entre os membros da família ou mesmo aquelas organizadas pelas professoras na escola. os cabelos eram curtos, repicados na altura dos ombros, divididos ao meio e entrelaçados por grampos, tranças, presilhas e outros apetrechos que ajudavam a segurar um pouco o volume. sua voz era áspera, como uma sola de sapato antiderrapante deveria ser, ou a pele de uma determinada espécie de tubarões. tubarão, aliás, era seu apelido na escola onde lecionava: seus dentes pequeninos e afiados, o bruxismo habitual herdado da mãe e o sorriso falso entreaberto aludiam certamente, na cabeça de jovens de pouco decoro, a esses animais traiçoeiros e mal-humorados. não se vestia bem, pelo menos não em comparação a outras professoras mais jovens e até mesmo às mais velhas. as saias eram compridas ou curtas demais, as camisas estavam sempre bem amarrotadas e com marcas de suor nas axilas, os sapatos eram também um ou dois números a mais ou a menos, as meias rasgadas e o pequeno camafeu enferrujado era uma lembrança de família que tornava o conjunto ainda mais fantasmagórico e triste. sim, pois era deplorável o estado dessa mulher que respondia ao telefone ansiosa, todas as noites. e eu ainda não havia descoberto, ana beatriz havia me alertado sobre as horas passadas no parque esperando, esperando, esperando, até que começasse a chover. roberto era um homem de poucas palavras. um e setenta e quatro, acho que os dois poderiam ter dificuldades sim nas horas mais afetuosas. mas o fato é que rebeca e roberto combinavam. até no jeito embaraçoso de responder "pois não" ao telefone, com certo rigor excessivo no que parecia ser mais adequado responder: "pois não comandante!" e o pelotão marcharia até a porta da nossa casa, o quarto da nossa filha, o berço da outra que nem chegou a nascer. roberto não usava camisas, só camisetas bem largas e cheias de desenhos psicodélicos que um amigo dele mesmo fazia criando efeito de tai dai. rebeca tinha insônia. roberto nunca depilava os pêlos das narinas. rebeca contava histórias para sua filha antes dela começar a dormir. roberto ficava acordado esperando a esposa dormir para depois telefonar. discava o número no telefone a disco (sim, era uma casa de relíquias) chec chec chec e depois deitava, depois da conversa sussurada finalmente ele deitava. rebeca tinha uma coleção de bules de porcelana restaurados. estilhaçados, e em seguida reconstruídos. roberto os destruía, tinha ciúmes de valder, marido de rebeca. o álbum de casamento, de capa florida e couro, acabou rasgado, mordido, arranhado, despedaçado com os dentes. rebeca tinha apreço pela mãe, natália, uma atriz recém-chegada da hungria, muito disposta, enfrentava a todos com uma altivez sórdida: "não estou velha, como verduras, me exercito, faço ioga quatro vezes por semana". roberto nunca se exercitava, lia o dia todo "as flores do mal" do baudelaire e colava pedaços das páginas no beiral da cama. rebeca usou "as flores do mal" em um de seus cursos de literatura para jovens bem pouco letrados por causa de roberto. roberto vivia em função de rebeca, que vivia em função de valder e que por sua vez, não vivia pois estava preso a uma cama de hospital desde o acidente. ana beatriz sempre dizia, como a grande delatora que era, que rebeca não fizera mais sexo desde então. e por isso roberto. mas ele nem era tão bom, preferia os livros, os poetas, as grandes histórias por trás de grandes homens que nunca o inspiraram a nada a não ser para o isolamento, a contrair dívidas em livrarias e sebos e deixar a esposa acordada a noite toda com a luz amarela do abajur cortando seu rosto. rebeca era amante. júlia era esposa. roberto, amante e marido. valder, marido. natália, atriz e mãe. o resto do mundo, um monte de espectadores acumulados em cadeiras de plástico arrastando os pés para lá e para cá. ana beatriz, essa sim era alguém, filha de executivos do petróleo, talvez. não tinha marido, nem amante, nem mãe, muito menos era atriz ou professora. tinha tudo, não podia reclamar, mas mesmo assim era a espectadora mais triste, porém mais aliviada e quieta, de toda a estirpe nas cadeiras.

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